Monday, October 23, 2006

Os seres humanos não são 'maus'

Se nada mais me interessasse nas tradições orientais, principalmente no budismo, ainda me encantaria o respeito que elas têm por todos os seres. Não só pelos seres humanos, acrescente-se (e mesmo isso hoje em dia também é difícil no Ocidente), mas por cada forma de vida existente. Todos os seres, de um homem a uma formiga, são manifestações de vida preciosas e únicas em si mesma. Todos os seres têm o direito incontestável e sagrado de não serem perturbados por ninguém no seu belo trajeto pela existência.

Por isso me aborrece e me cansa a presunção ocidental, de acreditar que o ser humano é 'especial', como se os outros animais fossem inferiores. A única coisa que realmente me parece digna de consideração nos seres humanos não é a racionalidade (até porque seguindo uma linha de elocubração estritamente racional, somos capazes de conclusões absurdas, e até monstruosas) mas a empatia.
Empatia é a capacidade de se colocar no lugar dos outros e determinar-se conforme as impressões daí advindas. Mais respeito e admiração eu tenho por um ser quanto mais empatia ele possui pelos outros: admiro e respeito quem se coloca no lugar dos outros seres humanos, mas admiro ainda mais quem consegue se colocar no lugar de todos os seres, inclusive animais. A empatia (e talvez o termo tibetano 'maha-karuna', que se traduz comumente por 'grande compaixão', seria melhor compreendido se traduzido por 'grande empatia') não é apenas um sentimento 'bonito', mas uma conseqüência de uma lucidez vital: quanto mais desenvolvidos e maduros somos, mais temos capacidade de desenvolver empatia, pois esse sentimento exige um elevado grau de abstração, de imaginação ativa, para ponderar como é 'estar nos sapatos de outra pessoa'.

Essa baboseira é por que hoje à tarde fui 'vítima' (que palavra apropriada!) de um acesso de fúria contra o filho de minha personal trainner, pois ele adotou um cachorrinho e, uma semana depois, após o bichinho criar um laço de afeição por ele, decidiu livrar-se do pequeno animal como se fosse um objeto incômodo. Quando pequeno, não li todo o "Pequeno Príncipe", mas realmente sempre me impressionou a lição de que 'somos totalmente responsáveis por aquilo que cativamos'.

Mas, após alguns minuto, percebi o quão boba e inútil era minha raiva. Na verdade, a raiva era porque no fundo eu imaginava que aquele rapaz era 'mau' - ou seja conscientemente indiferente. Tolice. Ele era, de certa forma, 'cego'. Ou melhor, ainda não tinha amadurecido o suficiente, ainda estava perdido demais em seus medos, desejos e auto-ilusões, para ser capaz de aprender a abstrair-se de seu individualismo e, na conquista de uma maior lucidez, estender sua imaginação e seus sentimentos sobre a vida de outros seres.

Então, voltando a uma questão posta por uma amiga há alguns dias, o seres humanos não são 'maus'. Isso, de novo, é bobagem ocidental: os 'chatos' orientais (porque será que "perdem tempo" falando da vida de uma formiga?), ao invés de falarem de 'bem' e 'mau' preferem falar em diversos graus de 'incompreensão'. Os seres humanos, em diversos graus, estão perdidos. E quanto mais perdidos estamos, mais capacidade temos de machucar aos outros, inclusive sem perceber a extensão da dor que infligimos.

Me lembro de como, com 15 anos, torturei uma pequena lagartixa com um estilete, provocando nela uma hemorragia. Fiz isso, mesmo sabendo no fundo de mim que não era o estilo de coisa de que gostava, a fim de provar para outros dois garotos que eu era 'durão', e podia participar de sua turma. No fundo, feri um outro ser devido a meu medo de ser rejeitado, por minha insegurança e pelo desejo voraz de ser aceito pelas pessoas, de encontrar meu lugar, meu lar. Quanto mais perdidos, tanto mais imaturos e indiferente somos.

Assim, na verdade, ao pensar no filho da minha 'personal', comecei a sentir um pouco de respeitosa comiseração por ele, pois talvez um dia ele atinja um grau de percepção e maturidade capaz de lhe propiciar o quadro total de quantos seres irresponsavelmente ele machucou no decorrer de sua vida - e, dentre todos, talvez ele notará que sua maior vítima foi ele mesmo - sim, porque a capacidade de ferir os outros advém do quanto estamos enredados por medos e desejos desesperados que, em última instância, nos machucam também e fazem de nossa vida uma confusão.

Isso pode soar como um pouco presunçoso e arrogante: eu, o 'lúcido' bonzinho; ele, o 'perdido' imaturo. Mas pensar assim seria esquecer que certamente sou muito imaturo em inúmeros outros aspectos da vida nos quais ele é mais lúcido e 'adulto' que eu (e nesse momento fico assombrado só de pensar o quão estou perdido em muitas coisas em que todo mundo ao meu redor já 'se achou', e nem sou capaz de perceber!). Fazer, mesmo inconscientemente, da falta de empatia dos outros uma forma de se auto-vangloriar pela sua caridade e bondade é uma inversão canhestra e fanática da humildade, advinda do conveniente esquecimento de que, em outras facetas de nossas vidas, estamos miseravelmente mais 'cegos' que os outros (inclusive, nossa caridade e bondade pode ser até uma forma de escapar desses outros aspectos, se nos iludir).

No final de tudo isso, eu já não sabia quem mais era digno de minha preocupação: se o cachorrinho prestes a ser abandonado, se o filho de minha 'personal trainner' (perdido em seus sonhos e medos), ou se eu mesmo! Por outro lado senti em meu coração uma satisfação tão grande em ser capaz de lidar com minha raiva, preocupar-me com os demais, e ao mesmo tempo perceber minha pequenez e o quanto ainda tenho que crescer, que não pude deixar de imaginar se essa satisfação não é o gosto de uma genuína felicidade.

11 comments:

Deni Meyer said...

Hugh??? Peraí, agora tô confusa!! Muito confusa... HELP!!!

Deni Meyer said...

Cara! Jurei que era a Karen que tinha escrito isso - apesar de algumas incongruências (pronomes masculinos e alusão à personal)!!!
Concordo contigo em muitos níveis, apesar de tu teres me dado nos dedos com a história da formiga (Ai,Ui!!)
Brincadeiras à parte (antes que o meu lado B cause mais um incidente diplomático), achei muito bacana o que tu escreveu e, deixando o meu cinismo habitual de lado, tenho que concordar que os seres humanos não são maus, mesmo...tu já me destes provas disso algumas vezes!! Até porque se tu fosse mau, não irias ter esse tipo de indagação, não é mesmo? Seria ruim e ponto. Os outros que se f...!! Mas não é assim, a gente se importa, a gente quer melhorar, quer evoluir...
Putz! Agora eu tô meditabunda, com uma conversa comprida e quase quebrando a regra que eu mesma criei de que um comentário não deve ser maior do que um post!!
Fuiiiiiiiiiiiii!!!

Victor said...

Ih Deni, não quis dar nos dedos de ninguém não! Aquela da formiguinha nos filmes orientais foi uma maldadezinha que coloquei de última hora, já quando tinha postado pela 1ª vez o texto, e fui ler aquele teu outro anterior ao meu. Como disse, uma maldadezinha... só para eu não perder a forma e a fama.

Vivi said...

Hugh, a gente sabe dessas coisas, mas há horas em que bate um desânimo... eu não quis falar nada para a personal pq pensei: ah, poxa, ela não tem culpa se o filho é um inconseqüente. Como costumo fazer, imaginei que, se falasse algo pra ela, poderia suscitar a raiva de quem, de outra forma, poderia se tornar um aliada. Mas confesso que, refletindo mais profundamente, nasceu uma dúvida inquietante. Até que ponto eximir-se da responsabilidade não é uma forma de incentivar que o filho continue a fazer coisas como a que vimos ontem?

Victor said...

Quem falou em se eximir da responsabilidade? Se reconhecemos que os outros agem imaturamente, ou seja, como crianças que torturam lagartixas não por maldade mas por ignorância, isso de forma alguma é uma autorização para sermos condenscendentes e omissos. Assim como toda criança merece um corretivo e umas palmadas 'didáticas', os adultos, mesmo motivados por sua própria cegueira, também merecem de vez em quando um puxão de oreia e uma vara de cinamomo na bunda. Não é porque sei que o Hittler no fundo era alguém perdido que vou ficar omisso dizendo 'ó tadinho' e deixando de aplicar no um 'corretivo' dos mais 'eficazes' e duros.

Victor said...

Que droga, não dá para editar os comentários! A última frase é "deixando de aplicar no sujeito um 'corretivo' dos mais 'eficazes' e duros"

Deni Meyer said...

Hugh, concordo com você...ainda ontem tava conversando com os meus pais sobre uma história até certo ponto bem parecida, onde por medo de ser grosseiro ou causar algum conflito, ficamos "batendo palma pra louco dançar" e acabamos deixando a criatura numa situação pior!! As vezes dar um puxão de orelha pode ser uma demonstração de carinho maior, ainda que a pessoa não entenda na hora.

Victor said...

Claro, até porque o puxão de oreia pode ser a única oportunidade para apertar um pouco mais que o merecido o lóbulo e fazer uma maldadezinha...

Victor said...
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amendokrem said...

Hugh, quando acontecesse comigo - e acontecesse muito - o que passaste ontem fico tão puta, tão puta que não consigo deixar de me manifestar, respiro fundo e tento argumentar, infelizmente não posso me omitir em certas situações. Afinal, porque eu não posso sentir raiva de alguém que está fazendo uma sacanagem destas? Depois que passa, mas leva muito tempo, eu sei que a pessoa não pode ser de todo ruim...agora, te confesso que não consigo controlar o meu desejo de que ela se estrepe de alguma forma. Eu sou terrível!!!

Victor said...

Amendokren, o problema não é que a raiva é algo 'feio', mas, além dela fazer muito mal para quem a sente (eu pelo menos fico como se tivesse levado um soco), é um sentimento contraproducente, pouco útil e talvez até prejudicial para a 'causa' que a motivou: com raiva, você argumenta de forma emocional, exagerada, fica impossível compor interesses, negociar, enfim, usar de todos os recursos que a tranqüilidade e um saudável distanciamento da situação permitem. De outro lado, no caso dos animais, a raiva tem um elemento pior ainda: imagine que você reclame para uma pessoa que, na rua, está maltratando o cachorrinho que leva para passear, ou critique duramente um carroceiro que maltrata o cavalo: quem garante que, essa pessoa, ofendida e irritada com sua intervenção (já que o tom da cena foi totalmente emocional), não vai mais tarde, quando chegar em casa, tratar o animal pior ainda, só de desforra?