Monday, October 23, 2006

As Lingüiças - Parte II


Ela sempre teve uma estranha predileção pelos próprios pés. Não que fossem belos. Ao contrário, eles eram mais magros e tinham veias mais aparentes do que seria desejável. Nenhuma imperfeição, porém, diminuía o prazer com que ela os livrava das meias e os trazia para junto do corpo, assim que se sentava numa cadeira confortável. Conhecia tão bem cada saliência e reentrância, que nenhuma alteração epidérmica passava-lhe despercebida. Assim, logo notou quando um pequeno edema formou-se na sola de seu pé. Curiosa, ela acompanhou o processo sem em nada interferir. Em dois dias, o edema perdeu a cor rosada e tornou-se uma aspereza plana. Foi só ao final do terceiro dia, enquanto massageava os pés com um ungüento perfumado, que descobriu o que se estivera preparando para ganhar a luz. A semente havia germinado: um alvíssimo broto de cordão erguia-se bem no centro de seu pé esquerdo. Ela decidiu não levar ao conhecimento de nenhum médico o que havia acontecido. Ao ineditismo do fato, a clamar por explicação, ela sobrepôs a alegria de ser a portadora de um segredo que a distinguia das outras jovens que conhecia. À medida que ele se tornava mais longo, aprendeu a lidar com o cordão. Para acomodá-lo com conforto, deixou de lado os vistosos tamancos de madeira que costumava usar, trocando-os por sapatilhas feitas de tecido macio e colorido. Quando o cordão tornou-se tão longo, que passou a ser impossível escondê-lo dentro do calçado, ela descobriu que podia cortá-lo, e o processo revelou-se menos doloroso do que o de aparar as unhas. Os anos passaram sem que ela jamais se traísse: a ninguém deu a conhecer o fio que espiralava do seu pé esquerdo, cuidadosamente preservando-o de qualquer exposição.

5 comments:

Deni Meyer said...

Essa história tá ficando cada vez melhor!! Já pensou em escrever contos infantis?
Mal posso esperar pela parte III!!!

Vivi said...

Er, acho que tenho lido muito mangá! ;-)

Victor said...

Que nada, isso é algo entre Borges, Cotazár e Kafka! Coisa de gente grande!

Victor said...

Digo, Cortázar.

Vivi said...

Então vc gostou, lindinho?!